O ligar dos pontos.
Era
uma linda garotinha, com um sorriso brilhante, mesmo com o dente de leite que
acabará de lhe faltar.
Ela
estava a brincar, a brincadeira era simples. Segura e roda, esse era o nome...
O espelho era segurado com força e o corpo rodado com delicadeza. Sem tirar os
olhos de você mesmo, e o mundo girando ao seu redor, como se tudo se
misturasse, mas só você permanecesse, esse era o sentir do "segura e
roda".
Até
que uma quina inesperada apareceu e bateu no dedo a rodopiar. O vermelho
intrometido espirrou, a mão desacelerou de dor e a quina gulosa comeu uma
pequena lasca do espelho; o suficiente para deixá-lo todo desconfortável e
fazê-lo quebrar em mil pedaços.
O
que poderia ter passado em seus pensamentos era uma cara de susto de seu pai,
até um grito, um xingar, ou qualquer punição desse tipo, mas essa era a menina
Begônia, e seu pai não brigaria pelo vidro, ficaria preocupado com o dedo.
-
Ta doendo Flor? - Ele disse com o ombro apoiado no batente da porta, enquanto
ela ainda pensava em como ir contar. Eu ouvi o barulho, por isso eu vim...
-Tá
sim pai, você cuida? Eu limpo tudo depois... Uma lágrima escorria, e essa
lágrima de nada tinha o que ver com a dor que lhe latejava o dedo.
-
Vem cá, vamos aprender a fazer um curativo. O sorriso era largo, como se o
machucar do dedo fosse o melhor que pudera acontecer.
E
no meio do processo:
-
Onde você aprendeu a curativar assim pai? Foi com a mamãe?
-
Foi, ela era muito boa com uma atadura nas mãos, consertava coisas muito mais
difíceis. Pronto, ta limpinho foi só de raspão, mas você não pode ficar
colocando a mão, ta? Se não vai demorar pra sarar. Você vai estar novinha em
folhas logo. Vamos limpar a nossa bagunça?
-
Mas é minha bagunça...
-
Eu deixei você pegar o espelho e não te disse que o que você estava fazendo era
perigoso, a bagunça é nossa, pequena.
-
Ta bom, mas eu vou limpar mais então. E sorriu.
Não
existiu cena mais bonita do que aquele sorriso banguela em meio àquelas
lágrimas instáveis. Era o sorriso sendo mais forte que a dor, mesmo que tivera
sido ela responsável pela possibilidade de sua criação.
Eles
começaram a limpar a bagunça, separar os cacos grandes dos pequenos; o colocar
dos farelos cortantes em uma caixinha de papelão com as palavras
"perigo" e "vidro" em cima, ela escreveu o perigo, por
pedido dele, e ele escreveu vidro. Ela disse que não era vidro, era um espelho.
Delicadamente
ele explicou que no espelho existe vidro e ela conseguiu aceitar, mesmo achando
estranho não chamar o espelho de espelho e sim de vidro.
Após
tudo limpo ele disse:
-
Toma cuidado com aquilo que você não consegue ver, ta bom? Ainda tem caquinhos
por aqui que talvez queiram ficar perto de você, mas eles machucam. Então
quando eu pedir para você não andar de pés no chão, você obedece, ta?
-
Nem de meias?
-
Só a de dedinhos que tem uma solinha, a de andar no chão.
-
Tá.
-
Vem cá, quero te mostrar uma coisa meu cactozinho, vem cá.
Ele
pegou a sacolinha com os cascos maiores e distribuiu em cima do tapete, um ao
lado do outro, sem a menor pretensão de fazê-los encaixar.
-Coloca
o seu dedo aqui em cima e olha para os cacos.
Ela
obedeceu, ficou girando o dedinho com curativo e observando os diversos
reflexos contidos ali.
-
O que você quer que eu veja pai?
-
O que esta na sua frente, linda. Todos os pedaços estão vendo o seu dedo?
-
Sim, estão sim.
-
Mas eles vêem da mesma forma?
-
Não, cada um vê um pedaçozinho, a não ser aquele ali que vê ele todo.
-
Mas se você parar de mexer o dedo ele só vê um pedaço, não é?
-
É, mas é sempre assim, ué.
-
É sempre assim, mas isso funciona com as pessoas também lindinha, e com as
coisas. Se você se mexer e se mostrar as pessoas poderão ver você como você é,
se ficar parada talvez elas só consigam ver um pedacinho seu, um tantinho de
nada. E talvez elas só vejam os seus machucados e isso pode fazê-las achar que
você é só machucado.
-
Mas vai sarar, não vai?
-
Vai, vai sim, mas mesmo assim você tem que saber que quando sarar esse pedaço
de espelho pode não estar lá para querer te ver ainda.
-
Entendi... Mas e as coisas?
-
Para as coisas funciona de uma maneira diferente, um pouco diferente só. Você
que tem que fazer as coisas mudarem de posição, para ver como você irá agir.
Para saber que as vezes tem uma quina no meio do "segura e roda",
tipo o prego e a sua bicicleta na semana passada, você lembra?
-
Sim, acho que não to dando sorte pai.
-
Você ta aprendendo a se mostrar e a ir ver o mundo à sua volta, linda. É normal
alguns pontinhos de sangue no caminho, é até importante. Vai fazer você lembrar
que prestar atenção no mundo que esta a nossa volta é importante e que se
mostrar também é, mas as vezes você vai perceber que se mostrar pode te
machucar.
E
com um sorriso singelo ela disse:
-
Entendi, vou tomar mais cuidado pai, obrigado e desculpa pelo espelho.
E
ele com um sorriso singelo disse:
-Sem
problemas, a gente compra outro e você vai poder brincar de novo.
Ela
pensou: "mas que seja lá fora então, pra eu não bater o dedo", mas
nada mais falou.
Ele
pensou: "que bom que você tenta entender, já é longe o suficiente”
-
To com fome...
-
Um sanduíche com requeijão mata essa fome?
-
Mata sim.
-
Então vamos lá...
"E talvez elas só vejam os seus machucados e isso pode fazê-las achar que você é só machucado."
ResponderExcluirPerfeito!